Saturday, 9 May 2009

As Farpas

Com o caminho de ferro, que presentemente a prende à capital por um breve e cómodo passeio, Sintra mudou muito de aspecto. Ao domingo, principalmente, a multidão trazida pelos comboios de recreio dá-lhe um ar popular de festa suburbana no Beato, nas Amoreiras ou no Campo Grande.À noite, porém, com a partida do último trem, a vila esvazia-se outra vez. Ao quente burburinho do povo, ao orneio dos burros, às risadas das espanholas, sucede-se o silêncio cavo do vale. A névoa, que lentamente desce da serra., limpa o ambiente da poeira impregnada das exalações da cerveja, do vinho de Colares e do peixe frito. E quando a lua desponta por cima dos castanheiros, esse astro tantas vezes invocado pelo velho lirismo da localidade, não hesitaria em reconhecer na sua decantada serra, no alcantilado relevo da penedia, nas ameias do castelo dos Mouros, na densa espessura dos arvoredos, no murmúrio da água por entre os musgos, no cheiro das giestas húmidas de orvalho, o éden de Childe Harold.Na segunda-feira pela manhã constata-se que o povo, apesar de tudo quanto as classes cultas receavam da capacidade do seu contacto, não levou consigo nada da antiga Sintra. Cá ficou, onde estava, o real paço, com as suas lindas janelas de dois arcos, manuelinas, em troncos podados; a sua bela colecção de azulejos de tipo árabe, de tipo flamengo e de tipo italiano; o seu cárcere de Afonso VI, a sua sala dos cisnes e a sua sala das pêgas, cuja lenda, Garrett tão encantadoramente narrou nas lindas trovas.Era uma pega no paço Que El-Rei tomara caçando...Na Regaleira os frondosos castanheiros continuam a ensombrar o mais lindo terraço que tem a serra.Em Seteais não deixou de crescer a erva no terreiro de correr touros e de jogar as canas no tempo do marquês de Marialva, e pelo arco triunfal, no pedantesco estilo pombalino, entra-se agora como outrora para a célebre quinta tão melancolicamente devastada nas alamedas, nos lagos, nos mármores das estátuas e nos arabescos de murta dos seus velhos jardins ingleses.Na Penha-Verde permanece o Monte das Alvíssaras com as árvores estéreis de D. João de Castro e as ermidas revestidas dos lindos embrechados do século XVI.

Na serra, entre o convento dos Capuchos e o castelo dos Mouros, o palácio da Pena, espera, insensível, que a licitação em hasta pública ou o acordo amigável entre os herdeiros de D. Fernando decida a quem aquele senhorio tem de pertencer.A propriedade de Monserrate, tão célebre pelas festas principescos que no principio do século aí deu William Beckford, como pelo quási lúgubre encerro em que hoje a sequestra da convivência social o Sr. Frank Cook, Visconde de Monserrate, seu actual possuidor, vai-se alastrando cada vez mais, ameaçando absorver tudo, porque o Sr. Cook embirra de avistar das suas janelas uma copa de pomar, um muro de quinta, ou um telhado de casa, a que ele não possa mandar dar pelo seu arquitecto, pelo seu decorador ou pelo seu jardineiro, a linha e a cor mais adequada para pôr a paisagem circunstante em harmonia com os princípios da sua estética ou com os caprichos do seu temperamento.Nos prados de luzerna da Penha-Longa continuam a pastar tranquilos os carneiros e as vacas de luxo, que dão a esta quinta, com os seus estábulos e com as suas oficinas rurais, o grande ar de uma granja inglesa.Finalmente, na fonte da Sabuga vai correndo sempre, férrea e desnevada, a cristalina água da serra. Fabricam-se como antigamente as queijadas da Sapa, tão gratas ao paladar de Lorde Byron. Abunda o bom leite, a manteiga fresca, as ameixas, os pêssegos, os vinhos palhetes de Colares, as rosas de D. Maria e os amarantos de Bernardim Ribeiro. Na frescura das velhas matas, no doce murmúrio das águas correntes, na suavidade da luz coada pela verdura das alamedas, durante os lentos passeios solitários sobre o solo fofo de folhagem, por entre as moitas dos fetos e das hortênsias, uma vaga palpitação de saudade parece errar com o perfume da flor das madre-silvas e da seiva dos castanheiros, como se à prosaica vilegiatura dos nossos dias alguma coisa se mesclasse dos poéticos ócios da corte de D. João II e de D. Manuel, envolvendo na azulada neblina da montanha os vagos e difusos fantasmas brancos das infantas D. Maria e D. Beatriz, das suas damas e dos seus artistas, de Paula Vicente, de Luísa Sigeia, de Bernardim Ribeiro, de Gil Vicente, de Garcia de Resende, de Luis de Camões.

A decoração humana tem de ser aqui completamente diversa da do Ribatejo. Por baixo das árvores dos Pisões, no perfume das Madre-silvas e das rosas chá, entre o murmúrio das águas e o gorjeio das cotovias, o campino, de cinta e colete encarnado no cavalo lanzudo, ferrado à ligeira, de sela semi árabe, e chairel de pele de cabra tem o ar nostálgico de se arrepiar de frio e de bocejar de tédio.Os divertimentos que em Sintra condizem com os aspectos da natureza são os jogos ingleses de jardim, os concursos hípicos, as corridas de cavalos, as batalhas de flores.A temporada deste verão foi excepcionalmente fértil em diversões desse género. Não se chegaram a realizar os concursos hípicos, os quais em toda a Europa têm tomado um tal incremento entre os prazeres da alta sociedade, que Francisque Sarcey exprimia ainda outro dia o justificado receio de que esta espécie de espectáculos viesse a matar, em breve tempo, o gosto pelo teatro. Mas, se as pessoas que em Sintra têm cavalos e carruagens não organizaram um certame formal, iniciaram-no indirectamente.A batalha das flores, organizada em benefício dos pobres da localidade, se não foi um concurso, foi já uma grande parada e uma bela revista de sport, em que se exibiram em grande gala no meio de um considerável luxo de flores, de pastilhas e de lindas toilettes de verão, os mais belos cavalos de tiro e as mais elegantes carruagens de campo e de passeio.A série de bailes foi inaugurada pela Princesa Amélia. A casa ocupada pelos duques de Bragança é a antiga quinta do Relógio. O prédio, relativamente pequeno, de um só pavimento, abre para os jardins um recanto do caminho dos Pisões, por uma fachada um pouco teatral, em três ou quatro arcos de volta de ferradura, em estilo árabe.A dois bailes dados na quinta do Relógio seguiram-se vários outros nas principais casas aristocráticas de Sintra, sendo o último o dos condes do Paço de Lumiar na linda propriedade dos marqueses de Pombal, e o penúltimo em casa dos duques de Palmela.

A casa de Palmela em Sintra, posto que moderna — creio ter sido construída pelos condes da Póvoa depois de 1834 — é das mais interessantes. Conserva a mobília e a decoração primitiva, o que faz dela um curioso tipo de civilizado interior da Restauração, com salas autenticamente e genuinamente semelhantes àquelas que organizaram e dirigiram em França Madame de Staël, Madame de Remusat, Madame Récamier, Madame Cuizot e Madame de Girardin. E no meio dos motivos egípcios da sua decoração mural, entre os grandes canapés rectilíneos e os altos tremós em colunas de mogno e de ébano com capiteis de bronze cinzelado, legado do primeiro império aos reinados que se lhe seguiram como derradeira invenção original na arte do mobiliário moderno, a silhueta da duquesa de Palmela parece achar-se em uma das molduras que mais convém à expressão das suas linhas.Na noite do baile o antigo parque através do qual se entra na casa Palmela, iluminado de muitos centenares de lanternas venezianas, abria na calma escuridão da noite flexuosas e fantásticas perspectivas de uma profundidade infindável. Por volta das dez horas, à chegada dos duques de Bragança, que se dignaram de assistir a esta festa, os violinos de uma orquestra invisível fizeram ouvir um desenvolvimento de melodia; duas filas de vinte criados, em grande libré, encarnado e preto, calção curto, cabelo empoado, levantando em candelabros as luzes de muitas velas, adiantaram-se desde a porta do vestíbulo até o extremo da marquise que abrigava a descida das carruagens enquanto a dona da casa, de vestido branco em brocado de ouro, recebia à portinhola do landau os seus régios hóspedes. E neste lindo espectáculo, sob os grandes castanheiros, numa quebrada da serra, envolto na solidão dos campos e na abóbada do céu recamado de estrelas, parecia celebrar-se numa espécie de misterioso enlace entre a poesia da noite e a graça hospitaleira da civilização.

Ramalho Ortigão
Outubro 1888

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